As vantagens da sutileza
Aprenda a ler sua vida (bem) lendo Madame Bovary (do jeito certo)
Noite.
Melhor dizendo: breu. Um negrume completo engole tudo. Exausto, com os braços já moles, as pernas bambas, ele não consegue saber onde está o céu, onde está a terra.
E nem onde está a água.
Ele oscila, jogado de um para o outro lado por uma força cega, enquanto usa o restinho de energia que lhe resta no corpo estropiado para ajustar-se às viradas, ao sobe e desce, aos trancos súbitos — e continuar de pé.
De repente, parece surgir algo. Olhos apertados, pescoço inclinado à frente. Num gesto inconsciente, ele coloca a mão por cima das sobrancelhas como se a dificuldade fosse o sol batendo-lhe na cara e não a escuridão da madrugada.
Uma… luzinha? Sim.
Frágil, minúscula, uma luz morna desafia o escuro, a noite, o silêncio, o mar… tudo.
É um farol! Finalmente, ele o tinha encontrado. Sempre o encontrava. Era uma de suas poucas certezas naquela vida imprevisível de pescador. A luz sempre estaria acesa.
A respiração normaliza. A pescaria tinha sido boa. Os caranguejos lhe dariam um bom dinheiro assim que ele chegasse à terra firme. Guiado pela incansável luz do farol.
Guiado por um escritor.
Peraí.
"Um escritor, Raul? Que porcaria é essa? Alguma metáfora super chique sobre a literatura ser um farol para a humanidade? Um simbolismo triplo twist carpado?"
Não. A história é literal. O pescador é literal. A luz é literal.
E o escritor? Igualmente literal.
Porque, ali na madrugada, com a mesma certeza de que a Lua estaria no céu, um sujeito chamado Gustave Flaubert estaria sentado, talvez ainda mais exausto que o pescador, calvo e descabelado, encurvado sobre a mesma página que já vinha escrevendo há quatro dias, trocando um adjetivo de lugar com a seriedade de um cirurgião mexendo numa das artérias do coração de alguém prestes a morrer — Flaubert estaria escrevendo Madame Bovary.
E Flaubert era tão metódico, tão obcecado, tanto se entregava à missão de criar a obra de arte perfeita que TODO SANTO DIA ficava até umas duas ou três horas da madrugada escrevendo. Escrevendo, riscando, reescrevendo, revisando, xingando e voltando à escrita.
Com o olhar desvairado, cofiando o gigantesco bigode, as costas suando, os pés batendo alucinados no chão porque não conseguia descobrir qual seria a palavra EXATA para descrever com a máxima precisão um gesto, um olhar ou uma muda insinuação.
Às vezes, levava uma semana para terminar duas páginas.
Então o coitado do Flaubert, putaço, em francês e com melhor vocabulário, escrevia longas cartas à sua peguete e dizia que só queria se jogar da janela. Que aquilo era uma vida de cão. Que não lhe entrava na cabeça como seus braços simplesmente não caíam, moles, do corpo exausto. Como é que seu cérebro não derretia.
Mas a luz continuava sempre acesa.
E qual foi o resultado de tanto esforço? De tanto sacrifício e entrega à arte?
Um dos maiores livros de todos os tempos.
Como surgiu Madame Bovary?
Gustave Flaubert desde moleque quis ser escritor.
Lia compulsivamente, mal tinha barba no rostinho macio e já escrevia, já inventava peças de teatro, já copiava e imitava os grandes da época.
Na época existia o rock? Não.
Mas havia os românticos — uma gente que gostava de glamourizar a morte, sentia um tesão meio masoquista pelo sofrimento e a-do-ra-va exaltar os sentimentos acima da razão.
"Pensar? Coisa de gente brega, frígida, seca, limitada. O negócio é sentir."
E Flaubert tinha umas inclinações um pouco… místicas. Queria descer às profundezas das coisas, virar o mundo do avesso, subir aos píncaros das verdades mais abstratas, desnudar o Céu.
Ou seja: era um artista.
Pois bem. Acontece que Flaubert resolve pegar todas as suas inclinações, todo o seu amor pelo lirismo e aquelas frases inflamadas, e escreve um livro. A sério. No qual gasta um belo tempo.
"As Tentações de Santo Antão."
Todo empolgado, quase febril, convoca dois amigos e obriga ambos a ouvirem um audiobook ao vivo — Flaubert lê tudo para eles. De cabo a rabo.
Não se ouvia um pio na sala a não ser a voz de Flaubert. Os amigos mal se olhavam. Não diziam nada, não faziam nenhum sinal com o rosto. Nenhuma vez tinham sacudido a cabeça num mudo assentimento. Nenhum deles tinha fechado os olhos num êxtase de quem saboreia as palavras ou quer imaginar melhor uma cena. Ninguém se mexia.
Mau sinal.
Flaubert, porém, como um sujeito em pleno stand-up que precisa terminar o show mesmo sem ter arrancado uma gargalhadinha da platéia, continuou a leitura até o final. Heroicamente.
Acabou. Olhou para os dois. Os dois olharam para Flaubert. Um silêncio pesado, desconfortável, enchia a sala.
"Cara… isso está uma bela merda."
Tá, os franceses no séc. IX não falavam "cara". Mas falavam "merda" — e falaram para Flaubert. Aquele assunto era extravagante demais, exageradamente bombástico e místico. Santo Antão era um assunto interessante? Orra!
Um santo que tinha ido morar sozinho, literalmente, no meio de deserto, e dizem ter brigado com demônios que lhe surgiam sob a forma de lobos, serpentes e outros bichos no fundo de cavernas escuras? Porra, dá um filme do Guillermo del Toro.
Mas o problema estava justamente aí: Flaubert se empolgava demais com aquela história toda. Deixava-se levar pela retórica, exagerava no lirismo, exaltava-se… numa palavra: perdia a mão.
Tinha de se acalmar. Pegar mais leve. Aquilo não daria certo. Então um dos amigos lhe propôs o seguinte: mudar o tópico. Largar Santo Antão. Fugir do que fosse místico e elevado. Tratar sua inclinação lírica a pão e água.
Flaubert tinha de escrever sobre algum outro assunto. Um tópico que não lhe desse espaço para todas aquelas exaltações.
E aí começaram a pensar em qual poderia ser o assunto mais banal de todos os tempos. A coisa mais comezinha, mais cotidiana, mais sem graça, mais vulgar e batida e fútil e vã que o mundo já tinha vist…
Peraí. Já sei.
Os stories da Virgínia?
Quase. Mas bateu na trave.
O assunto era o famoso, o indefectível, o onipresente e tão atual hoje como sempre: o chifre.
Seria uma boa ideia Flaubert escrever sobre o chifre de uma mulherzinha banal em cima do seu marido igualmente banal.
Sem arroubos místicos, sem visões sobrenaturais, sem cavernas ou jejuns ou a pele emaciada de um sujeito divino. Só uma mulher, no meio da roça, que resolve casar-se com um sujeito tranquilo que a adora — e, a partir daí, cria uma das histórias mais trágicas, maravilhosamente bem escritas e potentes de todos os tempos…
É assim que surge Madame Bovary. Assim que surgem Emma e Charles. Assim que surge a história do tédio e desejo modernos.
Que chapéu escroto da gota
Pois bem: como é que Gustave Flaubert começa "Madame Bovary", a maior história de corno manso já contada em toda a literatura?
Não é com a própria Madame Bovary. Emma, aliás, nem surge ou é citada no primeiro capítulo.
E mais: Flaubert não usa o primeiro capítulo para prender o leitor. Não *apimenta* a história com algum trauma horrendo ou revela parte de algum segredo bombástico que o leitor só vai descobrir no final do livro. O objetivo de Flaubert não é fazer você virar as páginas febrilmente, sem pensar.
O objetivo de Flaubert é fazer você desacelerar.
Não é para você sair correndo e só ler uma página porque quer chegar à próxima e descobrir o que vai acontecer. É para você prestar atenção a cada uma das páginas. Com calma, ler cada frase, cada descrição, cada imagem ou comparação.
Começamos com algum narrador descrevendo o primeiro dia na escola de um certo moleque.
Ser novato numa sala em que todos os moleques já se conhecem não é gostoso. Nem fácil. Pior ainda se você for um nerdola.
O moleque tinha cara de ser do campo. Mau sinal. Ser do interior numa escola da capital é quase garantia de você ser aloprado. O cabelo? Parecia cantor de igreja de aldeia. Duplo mau sinal. Talvez um cabelinho de cuia? Uma franjinha ridícula… não importa: o moleque não fez boa figura.
E os problemas continuam: as roupas são meio pequenas, o sapato está mal engraxado, ele é todo aprumadinho, todo acanhado, não reza pela cartilha da malandragem juvenil e escuta o professor com *respeito demais* — tipo aquela guria CDF da sala, que faz questão de sentar na primeira fileira e puxar o saco do professor: trazer-lhe uma maçã, usar setenta cores diferentes de canetas, fingir que os colegas não existem e prestar atenção irrestrita ao mestre ali em pé… só que, repito, UM MOLEQUE.
E existe mais um detalhe no tal moleque. Um chapéu. Chapéu que o menino mantinha firme em cima dos joelhos. Chapéu do qual não queria se desapegar por nada neste mundo. O que, aliás, é outra péssima coisa de fazer quando você está diante de um grupo novo de moleques, potencialmente hostis: eles já vão saber, na hora, o que arrancar de você para tirar uma com a sua cara, deixar você nervoso ou simplesmente desestabilizá-lo.
(sim, o mundo de moleques pode ser um negócio brutal)
Pois bem. Tudo o que eu falei até agora foi sendo reconstruído a partir dos poucos sinais que Flaubert coloca nas duas primeiras páginas do livro: descrição de roupas, de cabelo, de uma postura diante do professor.
Flaubert calcula, com máxima precisão, apenas o pouco que precisa mostrar para que nós mesmos possamos completar a cena (essa, aliás, é uma das formas pelas quais você pode ficar mais inteligente, perceptivo, interessante: pensar e perceber).
Só que uma coisa Flaubert faz questão de descrever com muitos detalhes. Tipo: muitos. Aliás, à primeira vista o sujeito parece que começou a escrever outro livro. Do nada, Flaubert pega o bendito chapéu do moleque e resolve descrevê-lo com detalhes milimétricos e absolutamente exatos.
O chapéu tinha algo de gorro de pelo, algo de chapska (um boné de origem polonesa), algo de chapéu redondo, algo de boné de lontra, um pouco de gorro de algodão… era uma mistureba de vários tipos de chapéus com não menos tipos de tecidos. E a descrição continua, estica-se, vêm outras características, surge um "veludo" aqui e "pelos de coelho" acolá…
Losangos, saco, polígonos cartonados e o escambau a quatro.
E você só fica pensando uma de duas coisas:
1) o que raios isso tem a ver com a história, Flaubert, para de falar sobre esse chapéu pelo amor já me perdi…
2) que chapéu estranho da gota.
Porque o chapéu, no final das contas, não faz sentido nenhum.
Se você prestar atenção, pesquisar os tipos de chapéus que ele cita e tentar imaginar uma só coisa que juntasse todos, logo perceberia isto: o resultado seria um negócio COMPLETAMENTE SEM PÉ NEM CABEÇA. Um chapéu escroto, feio, deslocado. Um monte de peças aleatórias de chapéus diferentes enfiadas numa única peça.
Mais ou menos como pegar um boné de aba reta da Vans, misturá-lo com um chapéu de palha, colocar uma pitadinha do chapéu do Beto Carreiro dar um toque de gorro do Chaves e algo da boina do Sherlock Holmes.
Ficaria algo ridículo. Feio. Absurdo. Desprezível. Do qual todo mundo tiraria sarro. Uma mistura mal feita.
Porque o chapéu, na verdade, é mais do que um simples chapéu. É um símbolo.
Tanto do caráter quanto do destino de quem o usa.
Porque quem segura o chapéu absurdo entre as pernas, com medo de perdê-lo, é Charles Bovary. O marido de Emma.
Um leve desvio para explicar a vossa senhoria por que saber algo sobre o tipo de narrador vai deixar você mais sexy
Antes, porém, de eu explicar o chapéu escr*to, existe uma outra coisa que preciso explicar antes.
O livro começa assim:
"Estávamos na sala de estudos quando o diretor entrou,
seguido de um novato com roupas à paisana…"
A palavra-chave é "estávamos". O livro começa com um narrador testemunha ou coadjuvante.
"Ai, lá vêm essas conversas chatas de escola…"
Aquiete o facho. Depois todo mundo vai para o Instagram choramingar, nas caixinhas, que "não conseguem se focar" ou queriam "ser interessantes" ou "são burras".
O primeiro passo é: esteja aberto a coisas novas. Queira aprender.
Ok? Voltando.
O livro começa, repito, com o tal do narrador coadjuvante. Que raios isso quer dizer? Que a voz contando a história para nós é a de alguém que estava lá quando ela aconteceu. Não é a voz do protagonista — Emma, no caso —, mas de algum fulano ou sicrano que participou de alguma parte da história.
Até aqui, nada de muito fantástico ou diferente. É o mesmo tipo de narrador que temos lá em O Grande Gatsby, por exemplo.
A coisa curiosa vem agora: Flaubert, no meio do capítulo, sem avisar, na mais perfeita CROCODILAGEM, muda o narrador. Pula da primeira para a terceira pessoa. A história deixa de ser contada por alguém que estava ali e vira uma voz atmosférica, que paira no ar. Como a voz de um narrador de filme.
Mas por que Flaubert não começou o livro com a voz em terceira pessoa? Foi um erro? Ele vacilou e só percebeu a cagada depois?
Não.
Foi porque Flaubert queria mostrar, desde o começo, como outros homens enxergavam Charles.
Não foi um narrador onisciente, uma voz do além, que descreveu Charles como um nerdola, com pique de religioso virjão e baba-ovo de professor. Submisso, cordeirinho, sem a famosa *energia masculina* dos red-pill.
Foi um outro moleque. Um outro homem.
E aqui está boa parte da questão principal do livro: Charles é chifrado? Sim. Emma é deslumbrada? Sim. A mulher é ingrata, inconsequente, sacana? Sim.
Só que Charles não inspira respeito em ninguém. Nunca. Nem no colega de escola que anos depois vai contar como tinha sido sua primeira impressão.
Flaubert faz questão de começar o livro com um narrador testemunha para dizer "olha, é assim que os outros homens enxergam Charles. Não é apenas Emma que o despreza."
E faz questão de começar o livro com Charles para dizer "veja, esse é o sujeito que vai ser ludibriado e aloprado."
Charles também não inspira respeito em nós, leitores. Se você leu o livro, Charles não inspirou respeito ou afeição em você.
O sujeito é um pouco repulsivo. O caipira deslocado, o tanga frouxa que não sabe como se misturar com os outros homens, que não sabe nem tirar sarro nem sair na porrada. Que não sai do lugar, não parece ter sonhos ou aspirações ou ímpeto ou qualquer coisa interessante. Um chuchu.
Você pode, depois, descer o cacete na Emma. Pode ficar p*to com ela. Só não pode se esquecer da sua reação a Charles, no começo do livro.
Depois, da metade do capítulo para a frente, ficamos sabendo que Charles era um pau mandado da mãe. Em seguida, um pau mandado da esposa. Um sujeito sem talento ou brilho secreto que transfigurasse o fato de ele ser tão desesperadamente CHATO.
Charles não tem vontade própria.
Parece ser uma mistura mal feita das opiniões alheias. Uma mistura como seu… chapéu.
De volta ao chapéu
Ok, finalmente vamos falar um pouco sobre o chapéu de Charles, sim?
Já expliquei por que o narrador tinha de ser uma testemunha. Já deixei claro que Gustave Flaubert não era trouxa e começa o livro com Charles para que você, leitor, seja honesto e dê uma boa olhada no tipo de sujeito que vai sofrer tudo aquilo.
O bendito chapéu.
Qual é a trama de Madame Bovary? Charles, um sujeito bom, mas sem sal e satisfeito com sua vida tranquila e pacata, acaba se casando com Emma Bovary… uma moliér que definitivamente não está satisfeita com uma vida tranquila e pacata.
Mulher deslumbrada com as loucas aventuras românticas que lia nos livros. Impulsiva, absolutamente ARRETADA, Emma é uma bicha arisca e volátil. Vai sendo jogada de um lado para o outro: ora enfeitiçada pelos perfumes e lifestyle dos ricos, ora se apegando com um fervor quase tesudo às partes sensíveis da religião — os incensos, as imagens de sofrimento e martírio, o sangue. A parte INTENSA da religião.
Emma tem brasas que lhe acendem tanto o coração quanto a xana. Só não acendem a cabeça.
É com essa mulher que o nosso Charlinho, pacato e ajuizado, acaba se casando. E, depois, é chifrado múltiplas vezes.
(ah, e antes que venham julgamentos fáceis e dedos em riste, é bom saber que:
naquela época, o divórcio era ilegal na França;
a mulher não poderia simplesmente fazer uma vida própria, escolhendo não se casar e "priorizar a carreira". Se a mulher não se casasse, teria ou de ficar num subemprego, ou virar freira ou “modelo do Onlyfans” antes de existir Onlyfans ou modelos;
as pessoas se casavam por conveniência e cálculo econômico. A ideia de alguém se casar "por amor" seria completamente sem noção para eles.
Mas estamos aqui para falar sobre o diacho do chapéu, Raul. Foco, foco. Chapéu.
Charlinho, então, leva para o seu primeiro dia na escola um chapéu feio bagarai. Ridículo, escroto, sem pé nem cabeça.
Qual é a primeiríssima coisa que ele faz com o chapéu?
Segura o chapéu, desesperado. Com medo de que os outros meninos o roubassem.
Mais tarde, já casado, Charlinho vai se apegar desesperadamente a outra coisa, ou a alguém…
Sim, você acertou. Emma. E Charles será roubado. Por mais de um homem.
Só que o chapéu também nos ajuda a entender outras coisas.
Charles não tem vontade própria. Sua mãe faz bullying com o coitado e, ou lhe falta coragem, ou lhe sobra preguiça para bater de frente com ela. Depois, é sua primeira mulher. Depois, é Emma. Depois, é o boticário da cidade.
Charles é um apanhado mal feito das vontades alheias — assim como seu chapéu é um negócio mal feito com várias partes de outros chapéus.
Parou aqui? Não. Uma das coisas sobre as quais Emma reclama em Charles (ela reclama de tudo) é que o pobre coitado não tinha uma conversa interessante. Charles não tinha suas próprias ideias. Da sua boca só saíam as conversinhas cotidianas, banais e comuns, iguaizinhas às de todas as outras pessoas.
Charles era um pacotão torto e capenga também das ideias alheias. Assim como… seu chapéu.
Acabou. Não.
O chapéu é feio. Mas é uma feiura particular. Não é apenas uma feiura grotesca. É uma feiura com "a mesma profundeza de expressão que o rosto de um imbecil".
O chapéu transforma-se num símbolo completo de Charles. Ou, pelo menos, no Charles visto pelos olhos dos outros homens no livro. Frágil, capenga, absurdo…
Imbecil.
Por que Flaubert começa uma história de cornice com o corneado?
Para mostrar que nem tudo é fácil. Que Emma ser egoísta não anula o fato de que o Charlinho nos dá RAIVA. Que ele tem uma virtude que não dá para sabermos se é apenas covardia ou apatia.
Mas que, também, afinal de contas, só olhamos o Charles de fora. Pelos olhos de outros homens.
Que a forma de o conhecermos é fragmentária, com pedacinhos de sua vida juntados com opiniões que os outros tiveram sobre ele…
E tudo isso dito com um mísero chapéu.
Finalmente, a Emma e tals
No segundo capítulo de Madame Bovary, finalmente surge a… Madame Bovary.
Mais uma vez, Flaubert não enfia um narrador que nos CONTA, com todas as letras, que Emma era isto ou aquilo — que era danadjenha, ousada e bem educada. Não, não. Soltar adjetivos comuns para descrever um personagem é a coisa mais fácil, mais preguiçosa do mundo.
Flaubert não é preguiçoso. E você, leitor, dê seus pulos e também não seja.
A história do capítulo é simples: no meio da noite, Charlinho precisa pegar um cavalo e partir à roça para cuidar da perna quebrada dum fazendeiro — o pai de Emma Bovary. Aquela é a primeira vez que Charles vê Emma.
Mas é, também, a primeira vez que Emma vê Charles.
Emma é linda. Um cabelão preto cai-lhe pelos ombros de leite. É inteligente e logo se vê que tem alguma cultura: sabe tocar piano e Flaubert faz questão de mostrar um desenho de Minerva que ela fizera para o seu pai. A moça lê.
Só que também mora enfiada no fundo da roça. Sua inteligência e cultura são perfeitamente inúteis para o seu pai, que só quer livrar-se dela o mais rápido que consiga para ter uma boca a menos na fazenda. São igualmente inúteis para ajudá-la a "conseguir um emprego."
Emma não tinha Instagram para acompanhar a vida dos influencers na Barra da Tijuca de Paris — ela nunca pusera os olhos em alguém de fora da roça antes, provavelmente.
Não tinha Instagram, mas tinha livros. Românticos. Os best-sellers da época. Livros com fugas apaixonadas sob um luar prateado.
Com paixões tórridas e suadas entre as ruínas de um castelo abandonado em algum lugar absolutamente longínquo da roça… com línguas esgrimando furiosamente, pactos quebrados em nome do amor, máscaras e passagens secretas, êxtase, adrenalina e paixões que lhe arrancam o sono, fraquejam os joelhos, forçam jejuns e AAAAAHHHHH
Transformam quem ama num misto de usuário de crack, dançarina de pole-dance e santo católico.

Ou seja: a imaginação era tão alucinada quanto a vida era sem graça.
E aí, no meio de uma noite, surge um médico na sua casa. Um sujeito de fora, que não está preso àquela bolhinha miúda e depressiva da fazenda. O cara tem glamour. Arruma a perna do pai como se não fosse nada. Emma não tinha como dar um rolê em algum barzinho universitário com sujeitos ricos e caçar algum fulano. Não tinha nenhuma experiência, nem com a vida nem com os homens. Seu pai não lhe explica porcaria nenhuma (para quê, né? É mulher…). Sua mãe tinha morrido e não poderia ajudá-la com conselhos de alguém mais velha.
Então Emma logo pensa algo bastante compreensível:
É minha chance.
Será que é tão fácil mesmo julgá-la? Apontar-lhe o dedo na cara e chamá-la de p*ta?
Emma sabia que Charles não chegava a ser um médico, e sim um mísero oficial de saúde? Não. Sabia que a fratura do seu pai era ridiculamente simples? Não.
Sabia, isto sim, que não teria futuro naquela fazenda.
Então, de forma sutil e magistral, sem dizer uma palavra, Emma começa a se aproximar de Charles…
Olhai o céu, Abraão
Às vezes, sou obrigado a lidar com a pergunta, feita à queima-roupa e sem rodeios: "a literatura serve para quê?"
E aí eu me sinto como um anjo. Desço das alturas nas quais eu vivo, pego o indivíduo pela mão, conduzo-o para fora de sua tenda e mando que ele, como Abraão, olhe o Céu.
O fulaninho, deslumbrado por estar vendo o céu à noite e não a tela de um iPhone, depois dos 30 percebe que existe algo chamado "estrelas". Balbuciando, com um fiozinho de baba tiktoker escorrendo-lhe dos lábios abertos, as engrenagens do seu cérebro começam a funcionar outra vez e ele tenta contar os pontinhos brilhantes no Céu. Como um bebezinho.
Eu lhe digo, então, com voz de trovão:
Consegues contar as estrelas? Pois bem: também não conseguirás contar as razões pelas quais deves ler literatura.
E aí poof!, eu sumiria.
Mas isso não é prático.
Então deixe eu usar Madame Bovary como um exemplo de como a literatura, por exemplo, serve para deixar você mais inteligente.
No segundo capítulo de Madame Bovary, como já vimos, surge enfim Emma. Flaubert, de cara, não faz nenhum comentário sobre a moça. Não descreve seu caráter. Não diz que ela gosta disto ou daquilo. Isso seria fácil e exigiria muito pouco do leitor. Não… Flaubert mostra.
Vamos ao livro:
Charlinho está na casa do pai de Emma, consertando o velho. Flaubert descreve a cena com detalhes: fala sobre as ferramentas de que Charles iria precisar, sem pressa, depois passa pela criada e finalmente chega à Emma. Sobre ela, zero comentários.
Apenas isto: ela tentava costurar almofadinhas. Tentava. Mas toda hora furava os dedos. E aí fazia o quê? Rápida, ligeira, sem titubear: ela os chupava.
Na frase seguinte, Flaubert começa a descrever o que Charles estava fazendo. Agora veja só que coincidência: Charlinho estava reparando na "brancura das unhas" de Emma!
Ora, ora, ora… mas que coisa, não? Charles estar prestando atenção logo ao exatíssimo lugar que Emma estava chupando.
Só que a coisa fica ainda mais sutil. Ao longo do livro, nós não sabemos direito quem é o narrador e quem são os personagens. Às vezes, o narrador descreve o que um personagem está sentindo ou fazendo e nós ficamos pensando: mas será que é o NARRADOR que está fazendo isso ou o PERSONAGEM?
Charles era um homem ajuizado e acanhado. Mas era homem. Casado, na época, com uma mulher muito mais velha com a qual sua mãe o obrigara a se casar só pelo dinheiro. Ou seja: em casa, tinha uma tiazona. Aqui, diante do seu nariz, surge uma novinha chupando o dedo. Várias vezes.
Charles não consegue ficar sem olhar. Mas é um piá de prédio. Não é sujeito malicioso. Então quando Flaubert diz que "Charles ficou surpreso com a brancura das unhas dela" é como se estivesse fazendo isto aqui:
"Ó, leitor, está vendo? O sujeito quer convencer a si mesmo de que está olhando a unha dela. A unha! Seria feio demais admitir que está olhando ela chupar os dedinhos."
Ou seja: Flaubert está sendo irônico.
Entre o leitor atento e Flaubert cria-se uma cumplicidade. Nós sabemos o que Charlinho realmente estava olhando.
Só que a coisa não para aí.
Flaubert continua descrevendo Emma. Aqui está:
Charles ficou surpreso com a brancura das unhas dela. Estavam brilhantes, finas na ponta, mais limpas do que os marfins de Dieppe, e cortadas em forma de amêndoa. Sua mão, entretanto, não era bonita, não bastante clara, talvez, e um pouco seca nas falanges; era longa também demais, e sem moles inflexões de linhas nos contornos. O que tinha de bonito eram os olhos; embora fossem castanhos, pareciam negros por causa dos cílios, e o seu olhar chegava às pessoas francamente com uma ousadia cândida.
As partes em negrito são aquelas em que chegamos mais perto de Charles. As outras são comentários do narrador. Tipo aqui: "unhas mais limpas do que os marfins de Dieppe". Charlinho não sabe o que raios é um marfim de Dieppe.
Mas quando chegamos aos olhos… a coisa muda.
O olhar de Charles pula das unhas para os olhos. Eram bonitos. Tinham um castanho que poderia parecer preto. Ok. Só que especialmente "o seu olhar chegava às pessoas francamente, com uma ousadia cândida."
Você vai me perdoar a ênfase, mas o itálico às vezes é preciso. Tudo aqui é genialmente sutil.
Emma estava chupando os dedinhos, várias vezes, enquanto mantinha para "as pessoas" (e para Charles ver) um olhar de sincera ousadia.
A mulher está flertando furiosamente. Charles, coitado, não consegue nem mesmo admitir que estava c*gando para as unhas e tinha olhado, mais de uma vez, para o sanguezinho que os lábios de Emma logo vinham cobrir. Sugar, chupar.
Emma, por sua vez, faz aquilo com o olhar ousado. Intenso. Desavergonhado. Mas não olha diretamente para Charles. Não é assim que funciona. Ela dispersa o olhar pela sala, com uma insinuação oblíqua…
Charles é uma presa.
Emma é a caçadora.
Toda a personalidade tanto de Emma quanto de Charles estão aqui nestas poucas linhas. E não é apenas que Flaubert não descreveu nada — ele não colocou nenhum diálogo.
Teria sido ridiculamente fácil simplesmente contar tudo o que estava acontecendo: "Emma convenientemente furava seus dedos diante de Charles, e com um olhar ousado furava e chupava, furava e chupava… Charles, meio abobado, não queria admitir para si mesmo que a moça lhe causava pensamentos impuros, que os lábios macios envolvendo aqueles dedos… não. Preferiu dizer para si que as unhas dela eram lindas!"
Teria sido fácil. Mas não haveria toda a ambiguidade. A ironia. As diversas camadas. O leitor não seria obrigado a prestar mais atenção e ser capaz de pescar sinaizinhos sociais miúdos, quase imperceptíveis.
Teria sido fácil. O leitor só não ficaria mais inteligente.
O livro só não teria virado um clássico.
E você, claro não estaria lendo este texto absolutamente topíssimo. Agora, está na hora de finalizarmo-lo analisando um detalhe neste capítulo que serve para resumir o livro inteiro.
Fechando com chave de aranha
Ok, vamos finalizar a rápida análise de Madame Bovary em grande estilo?
Nem chegamos a sair do primeiro e segundo capítulos. Eu só fui desdobrando um pouco de tudo o que Flaubert enfiou de forma compactada no livro — como alguém desfazendo, com máximo cuidado, as dezenas e centenas de dobras dum origami.
Já lhe mostrei o que se pode fazer com unhas, uma agulha e dois parágrafos. Usando sugestões, Flaubert cria boa parte da relação psicológica entre Emma e Charles usando sete ou oito linhas.
Já sabíamos quem Charles era por causa do capítulo anterior. Conseguimos seguir o fiozinho luminoso das sugestões.
Emma, porém, surge pela primeira vez aqui neste capítulo. E eu lhe garanto: Flaubert contou a história da mulher inteira aqui e você não percebeu.
Voltemos ao livro. Charlinho acabou de consertar a perna do velho. O sujeito convida o médico a comer algo antes de ir embora. Por quê? Nao era trouxa e tinha percebido os olhares entre Charles e Emma.
Flaubert começa a descrever a sala. Um cheiro de íris e roupas úmidas. Uma mesinha… de repente, uma coisa é descrita com mais detalhes. Se Flaubert gastou cinco linhas com algo, pode ter certeza de que não foi sem motivo. Eis o algo:
“Havia ali, para decorar a casa, dependurada a um prego, no meio da parede cuja pintura verde estava escamando devido ao salitre, uma cabeça de Minerva feita com lápis preto, enquadrada numa moldura dourada, e que trazia, embaixo, escrito com letras góticas: “Ao meu querido papai”.”
Emma tinha feito um desenho de Minerva. Primeira pergunta: quem raios é Minerva?
Minerva é a deusa da Sabedoria, Justiça e Leis. Também estava ligada às Artes.
Ora, ora… Emma é a história de alguém que faz exatamente tudo o que a Sabedoria lhe recomendaria não fazer. Emma, também, tem alguns probleminhas básicos com a ideia de Justiça. E o adultério, naquela época, era caso de polícia — ilegal.
Só que Emma também é ligada às artes, não é? De certa forma, sim. Foi por muito ter lido seus romancezinhos de estimação que seu espírito ficou todo efervescente, todo nicholas cagezinho.
O problema é que as tais artes foram precisamente o que enfiaram na sua cabeça a ideia de fazer precisamente o contrário do que a Sabedoria de Minerva lhe recomendaria.
A figura de Minerva é dupla, triplamente irônica. Só que tem mais. Emma faz questão de escrever com letras góticas um "Ao meu querido papai". Se você nunca viu letras góticas, sugiro que dê um Google, olhe algumas imagens com cuidado e volte aqui.
As letras góticas são absolutamente ornamentadas. É uma coisa INTENSA, tão exuberante que beira a selvageria. É o sublime, uma energia expansiva que mal consegue se controlar e evoca imagens extremas de sofrimento e devoção. Tipo… a personalidade inteira da Emma.
Acabou aqui? Não.
Na mitologia romana, uma das tarefas da deusa Minerva foi expulsar do Olimpo uma deusa menor, que vinha usurpando-lhe o Trono. O nome da deusa? Dullness. Ou Ennui.
Traduzindo: o nome da deusa menor era tédio.
Minerva é obrigada a lutar contra o tédio para que se tornasse, definitivamente, a deusa e símbolo da Sabedoria. E Emma é obrigada a lutar contra o quê? Com a vida pacata no campo, com a falta de variações ou estímulos empolgantes — falta de festas, arrebatamentos românticos ou sexuais, surpresas, conversas *profundas*, viagens ou ambições… Emma também precisa lutar contra o tédio. Teria de vencê-lo para alcançar a sabedoria. Noutras palavras: para não fazer merda.
Minerva, porém, vence a batalha. E quanto… à Emma?
"Caramba, quanta coisa! Agora preciso dar um tempinho e processar tudo iss…"
Não acabou. Volte aqui. A parte principal vem agora.
Uma das histórias mais famosas sobre Minerva é seu duelo com uma mortal: Aracne.
Aracne era uma mulher extraordinariamente hábil com a costura. Tão ágil, tão criativa e tão incrivelmente técnica que a mulher começou a se gabar um pouquinho… demais. Começou a dizer que a própria deusa Minerva não conseguiria fazer um bordado melhor que o seu.
Os deuses romanos não se faziam de rogados. Minerva ouviu a mortal e, em vez de ignorar uma mulherzinha aleatória, descabelou-se divinamente, subiu nos tamancos olímpicos e desceu à Terra para ficar olho a olho com Aracne e fazer-lhe o desafio do século: um emocionante duelo de bordados.
Aracne, confiando no seu taco (ou lhe faltando uns parafusos), resolve peitar a deusa. E o resultado da primeira e última batalha de crochês na história foi previsível: a mortal levou uma sova da deusa.
Mas ainda não arredou o pé. Não queria aceitar que tinha perdido. Literalmente, bateu boca com a Sabedoria. E a mulher foi ficando tão inflexível, sua cabeça foi se tornando tão ridiculamente dura pelo orgulho obstinado, que Minerva foi obrigada a dar uma de ET do Spielberg: pegou seu dedo luminoso e o levou à testa da mulher.
Com todas as letras: enfiou-lhe juízo na cabeça.
Assim que a razão voltou-lhe à cabeça, Aracne pôde olhar a situação com sabedoria e viu o que tinha feito. Sua loucura, sua obstinação, seu orgulho empedrado…
Será que eu preciso dizer quem mais luta com a sabedoria? Quem mais é obstinada, irresponsável, loucamente orgulhosa (e cujo orgulho é manipulado pelos seus amantes?). Aracne representa Emma.
E, no final, a ficha tem de cair tanto para uma quanto para a outra. Aracne sofre um fim trágico. Minerva transforma a mulher numa aranha. Sua punição seria eternamente fazer aquilo de que tanto tinha se gabado em vida: fiar. Mas, agora, como um bicho grotesco e repulsivo.
Como a aranha que Flaubert diz, em certa altura do livro, que vinha fiando teias de tédio no coração de Emma…
Não vou dar spoilers sobre o final do livro.
Você vai precisar descobrir, sozinho, qual é o final da história de Emma. E tirar suas próprias conclusões sobre o que lhe acontece.
Mas você consegue entender, agora, por que esse livro é um clássico?
Porque cada palavra, cada frase, cada descrição e imagem foi meticulosamente escolhida para transmitir algo. Para comunicar e sugerir. Para pegar uma fofoquinha banal e transformá-la num livro tão profundamente significativo naquela época como é hoje.
Para elevar o mesquinho. Eternizar o transitório. Fixar as experiências humanas mais sutis numa forma de dizer memorável.
Agora me parece sem graça ler um livro sem a análise d'O Raul.
que texto divertido e bem costurado! curti demais!